Entre o Amar e o Brincar: O Espaço Onde a Vida Acontece

Entre o Amar e o Brincar: O Espaço Onde a Vida Acontece

 

“These precious illusions in my head -“Essas ilusões preciosas na minha cabeça

Did not let me down when I was defenseless – Não me decepcionaram quando eu era indefesa

And parting with them is like parting with invisible best friends.” -E me separar delas é como me separar de melhores amigos invisíveis.”

(Alanis Morissette – Precious Illusions)

 

Um belo dia, movida pela inquietação de quem observa os vínculos murcharem e os afetos esvaziarem de sentido, decidi escrever sobre duas potências humanas que parecem cada vez mais esquecidas: a capacidade de amar e a capacidade de brincar. O tempo passou, as ideias se expandiram, se entrelaçaram, e o projeto ficou inacabado. Mas talvez não por acaso, talvez porque brincar e amar nunca estejam mesmo prontos. São verbos, não substantivos. São processos, não coisas. São movimento, não estrutura. Exigem corpo, tempo, risco, muita coragem e uma dose de ilusão.

A complexidade de amar o outro nasce da simplicidade profunda do brincar. E brincar é algo que se move entre mundos. Ele não está dentro, nem fora, ele acontece entre. Entre o eu e o outro, entre a fantasia e a realidade, entre o possível e o impossível. Brincar é encontro. É linguagem não verbal. É corpo em ação. É experimentação do desejo e dos limites. É criação de mundo.

A magia do brincar é um fenômeno humano universal. Assim como o amor, ele envolve criação, ilusão, excitação, decepção, fracasso e reconstrução. Quando brincamos de verdade, não apenas passamos o tempo, fazemos algo com ele. Criamos sentidos. Tocamos o que ainda não tem nome. E como isso se aproxima do amor!

Amar, assim como brincar, exige abertura à ilusão.

Ao contrário do que muitas vezes se diz, a ilusão não é um delírio imaturo que devemos vencer com racionalidade. Ela é um componente fundamental da experiência humana. É por meio dela que atravessamos as primeiras experiências de mundo. É a ilusão que permite que um bebê acredite, por algum tempo, que o seio que o alimenta é parte dele. Essa experiência de onipotência, sustentada por um ambiente suficientemente bom, dá ao bebê a sensação de que o mundo é habitável, que o outro pode ser confiável e que o desejo tem lugar.

Mais tarde, vem a desilusão, mas não como tragédia. Vem como abertura. A mãe começa a falhar um pouco. O bebê tolera um pouco mais. E entre essa tensão, nasce o espaço transicional. Esse espaço é o lugar da ilusão compartilhada, onde surgem os objetos e fenômenos transicionais: aquele paninho, o polegar, o brinquedo preferido… objetos que ajudam a construir a ponte entre o dentro e o fora. Entre o real e o imaginado e que aos poucos vai levando o bebê para o mundo externo.

Winnicott chamou esse território de espaço potencial — e mesmo na vida adulta, é nele que seguimos habitando. Trata-se de um lugar psíquico e relacional que acolhe o brincar, a arte, a música, a espiritualidade e, por que não, o amor. Um entre-lugar: nem só interno, nem puramente externo. Ele existe entre o eu e o outro, e só pode florescer se houver confiança. Mas não qualquer confiança! Não aquela imposta, exigida ou comprada. Falo de uma confiança que se constrói lentamente, com presença, com tempo, com cuidado.

E quando esse espaço é violado, seja por negligência, pressa, trauma, inconsistência, medo ou desespero, algo se rompe. E o que se rompe não é apenas a confiança, mas também a possibilidade de criar e a coragem de arriscar. Fica mais difícil amar de novo. Brincar de novo. Acreditar de novo. Porque quando a confiança se rompe, algo em nós se retrai e com isso, perdemos o chão onde a ilusão poderia pousar.
E sem ilusão, o sonho não acontece.

Afinal, sonhar é também confiar no invisível, se deixar levar por aquilo que ainda não é, mas poderia ser. É nesse gesto de entrega que a ilusão se faz abrigo e é por isso que ela importa tanto.

A ilusão está diretamente ligada à capacidade de sonhar. Para não me ater apenas a descrições psicanalíticas, gostaria de trazer aqui o escritor moçambicano Mia Couto, que, por suas vivências com muitas culturas diferentes na África, nos oferece um conceito de sonho interessante e inquietante. O autor sugere que, para sonhar, é necessário se desligar do corpo e do mundo externo; é preciso deixar de ver para acessar esse outro lugar. Em algumas culturas africanas, a palavra “sonhar” é a mesma que “voar”; não há distinção (Couto, 1998). Voar é justamente sair do meio em que vivemos, da realidade, permitindo que sejamos tomados pela ilusão, mas (se tudo correr bem) sabendo que podemos pousar novamente no chão, ainda que com um osso ou outro quebrado.

Se a ilusão é a base do brincar, ela também é a base da esperança. A esperança é sempre algo inacabado, um eterno vir-a-ser, nas palavras de Heidegger (1927/1996). Eu espero e, por isso, aposto. Longe de ser algo passivo, a esperança é a capacidade de acreditar em algo, mesmo sem garantias, e agir naquela direção.. E essa criação exige imaginação, exige entrega a um futuro incerto, a uma promessa que pode não se cumprir. Em um mundo que idealiza a razão e abomina o fracasso, a ilusão virou sinônimo de fraqueza. E com isso, fomos perdendo espaço para experimentar (e errar!)

Mas amar é um campo de ilusão. Não se ama apenas o que é. Ama-se o que se imagina junto. E ao amar, inevitavelmente, nos desiludimos também. Ilusão e desilusão são parte de um mesmo ciclo. E quem tenta evitá-las, evita também o que há de mais vital na experiência do encontro.

Brincar é fazer. É ação. Quando se brinca, algo é construído. E essa construção é relacional. O brincar livre é espontâneo, criativo, improvisado. Não segue regras rígidas. E justamente por isso é o lugar onde a criança aprende sobre si, sobre o outro, sobre os limites, sobre os afetos, sobre a frustração. É no brincar que se aprende a lidar com a decepção e a reconstrução. A suportar a diferença. A negociar. A parar e retomar. A reparar.

Panksepp, um dos grandes nomes da neurociência afetiva, demonstrou que há um sistema cerebral específico para o brincar nos mamíferos. Brincar ativa regiões do cérebro ligadas à empatia, à autorregulação, à sociabilidade e ao prazer. Em outras palavras: brincar é um ato radicalmente estruturante. Uma criança que brinca se torna um adulto mais capaz de tolerar frustrações, de se vincular, de regular suas emoções, de viver.

Mas o que acontece quando essa capacidade é perdida? O que acontece quando o brincar vira apenas simulação, quando a infância é capturada por telas, diagnósticos e hiperprodutividade? Talvez o que esteja em jogo seja mais do que o tempo livre ou a espontaneidade: talvez estejamos perdendo a própria capacidade de amar.

Brincar pressupõe confiança no outro. Um campo de co-criação onde o erro não é fim, mas começo. Jessica Benjamin escreve sobre isso lindamente. Ela mostra como, desde cedo, os jogos lúdicos entre mãe e bebê não são apenas passatempo, são atos de reconhecimento. Eu vejo você. Eu valido o que você sente. Eu te acompanho no jogo. Essa co-criação é a base de uma relação saudável. Não se trata de dominação nem de fusão. Trata-se de sustentar a alteridade.

E essa lógica não se esgota na infância. Ela se reinventa o tempo todo nas relações adultas. Nas amizades. Nos vínculos amorosos. Nos processos terapêuticos. Nas relações de trabalho. A forma como brincamos (ou não) com o outro diz muito sobre nossa capacidade de entrar num campo onde o sentido é feito a dois. E também sobre a capacidade de tolerar rupturas — e buscar reparações.

Benjamin fala sobre isso: toda relação passa por falhas. E a possibilidade de retomada, de reconstrução, é o que diferencia uma experiência de vínculo de uma experiência de abandono. As crianças ensaiam isso o tempo todo: uma pega o brinquedo da outra, a outra chora, a primeira devolve, as duas voltam a brincar. O jogo foi interrompido, mas o vínculo pode ser mantido. Isso se chama confiança. E se transfere para a vida.

Amar, como brincar, é um movimento de entrega. E só se sustenta se houver espaço para a espontaneidade, para o erro e para o retorno. Para a ilusão e para a desilusão. Para o desejo e para o luto. Quando a relação emerge após um processo de ruptura e reparação, ela não volta ao estado anterior, mas se transforma em uma relação mais forte e profunda. Mas como manter um vínculo quando as relações parecem ser cada vez mais descartáveis? Onde seguir para o próximo match parece ser sempre a solução mais fácil?

A cultura do “next” nos oferece a promessa de uma satisfação sempre por vir, mas que nunca se realiza por completo. Como se o outro tivesse que nos divertir, nos nutrir e nunca nos frustrar. Como se relacionar fosse deslizar o dedo, e não atravessar a complexidade de encontrar um outro de verdade: um outro com limites, com sombra, com falta.

Zygmunt Bauman falou sobre isso com precisão ao descrever as “relações líquidas”: conexões frágeis, utilitárias, instáveis, que evitam o compromisso justamente por temerem o peso do afeto real. Nessa lógica, manter-se livre é mais importante do que se vincular. O vínculo é visto como ameaça à autonomia, não como campo de crescimento. E, assim, vamos todos nos tornando mais solitários, ainda que cercados de possibilidades.

Mas não é possível curar traumas relacionais fora de uma relação, assim como não se aprende a andar de bicicleta apenas assistindo vídeos no YouTube. Podemos imaginar o movimento, ensaiar no ar, decorar a teoria. Mas é só quando subimos na bicicleta, com os pés no pedal e o corpo em risco de queda, que o medo aparece. E é justamente aí que algo pode se transformar.

O mesmo vale para os afetos: só dentro do campo relacional os gatilhos emergem  e, com eles, a chance real de fazer diferente. De encontrar novas formas de permanecer. De confiar, de cair, de reparar. De amar.

Vínculos reais não sobrevivem sem tempo, sem investimento, sem corpo presente. Vínculo não se terceiriza nem se terceiriza o trabalho emocional que ele exige. E talvez seja por isso que a pergunta mais urgente nas relações de hoje não seja “você me ama?”, mas sim: Você quer brincar comigo?

Essa pergunta contém tudo: disposição, abertura, entrega, risco, afeto. Ela inaugura um espaço potencial. E é nesse espaço que a vida, de fato, acontece.

Autor: Danielle Vieira CRP 06/131376

Referências:

BENJAMIN, J. The Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism, and the Problem of Domination. Nova York: Pantheon Books, 1988.

BENJAMIN, J. Beyond Doer and Done to: Recognition Theory, Intersubjectivity and the Third. Londres: Routledge, 2018.

COUTO, M. Vozes anoitecidas. Lisboa: Editorial Caminho, 1998.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução: Joan Stambaugh. Albany: SUNY Press, 1996. (Original publicado em 1927)

KRUTZEN, H. Psicanálise Relacional, Neurociências e Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Editora Lux, 2021.

PANKSEPP, J. Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. Nova York: Oxford University Press, 1998.

PANKSEPP, J.; BIVEN, L. The Archaeology of Mind: Neuroevolutionary Origins of Human Emotions. Nova York: W.W. Norton & Company, 2012.

WINNICOTT, D. W. Playing and Reality. Nova York: Routledge, 1971.

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