Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
Quando amamos alguém, principalmente dentro dos nossos laços familiares, é natural desejar que essa pessoa evolua, floresça, supere seus medos e se torne uma versão melhor, enxergamos potencial muitas vezes antes mesmo da própria pessoa, desejamos o bem, queremos evoluir junto, ver a pessoa crescer na vida pessoal, profissional e em todos os sentidos e quando temos essa capacidade de enxergar o potencial nos encantamos com o que pode vir-a-ser.
Mas e se amar, de verdade, for exatamente o oposto disso? E se o amor for aquele que consegue dizer eu te aceito como você é, mesmo quando não compreendo, mesmo sabendo que você tem potencial para mais, mesmo sabendo que você ainda não pode se reconhecer naquilo que eu vejo? E se aquilo que eu vejo talvez não seja nem parte do seu desejo?
Para Heiddeger o sentido do nosso ser é determinado pelo modo como nos projetamos no tempo, e o tempo é a instância chave onde compreendemos a nós mesmos e aquilo que nos acontece. Não somos seres prontos, somos “seres em projeto”, constantemente lançados em direção ao futuro. Somos seres lançados no mundo (Geworfenheit), ou seja, não escolhemos onde, quando, nem de que forma começamos a existir. Mas a existência autêntica exige que eu assuma essa condição e faça dela um projeto próprio.
O tempo é particular, marcados por nossa história, pela interpretação que fazemos da nossa história, pelas experiências que conseguimos simbolizar e por todas as que ainda permanecem como fragmentos em aberto. Ou seja, só pode apropriar-se de si e de sua história um “ente cujo futuro dá sentido ao passado”. O conhecido “torna-te o que és” só é possível se sou o que escolho me tornar.
Quando desejamos que o outro mude, mesmo com a melhor das intenções, também tentamos impor a nossa linha do tempo e a nossa forma de absorver e interpretar os fatos e emoções, que quase nunca é igual a do outro, o ritmo fica descompassado e perde-se a compreensão do outro e do tempo. A mudança só pode acontecer se ele mesmo se projetar em direção a uma nova possibilidade de ser. Não há apropriação real do passado sem um projeto consciente de futuro.
Aceitar o outro como ele é parte da compreensão de 3 fatores importantes:
- Não nascemos prontos.
- Nos tornamos a partir das escolhas que fazemos diante do que herdamos.
- A autenticidade está em escolher conscientemente um modo de ser, mesmo dentro das condições que não escolhemos.
Por isso, a aceitação se torna uma expressão ética do amor. Aceitar o outro, sobretudo dentro dos lações familiares, é reconhecer que o tempo dele pode ser diferente do nosso. Que seu projeto pode não coincidir com a minha expectativa. E que a história do outro só será apropriada quando ele tiver condições de sustentá-la, e se ele quiser, dar um novo sentido.
Na vida familiar, onde os afetos são carregados de ambivalência, onde o amor convive com a frustração, com o desejo de reconhecimento e com as feridas antigas, respeitar o tempo do outro é das tarefas mais complexas e talvez mais maduras. Porque aceitar alguém é também aceitar que talvez ele não possa (ou não queira) se tornar aquilo que projetamos. E amar, nesse contexto, é sustentar o vínculo mesmo na ausência de reciprocidade plena, é suportar sem retaliar ou sucumbir como coloca Winnicott, mas acima de tudo é soltar aquilo que não podemos controlar e ter a capacidade de confiar e acreditar no que está por vir.
Em um mundo impaciente, em uma sociedade que prega o individualismo e nos ensina a cortar o que não nos serve, aceitar o outro como ele é pode parecer fraqueza, mas talvez seja justamente o contrário. Porque amar alguém exatamente como é, com tudo o que ainda não se tornou exige uma força interna que não depende de controle, mas sim de presença e da capacidade de sairmos dos nossos estados “ensimesmados” narcísicos e enxergar o outro para além de como ele nos faz sentir.
Em tempos de urgência, amar pode ser apenas estar presente no tempo do outro. E como é díficil.
Autor: Danielle Vieira
Referências:
Heidegger, M. (2012). Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes.
Winnicott, D.W. (1990). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.